Em SC, neto de 11 anos vira ‘professor’ e inspira avó na alfabetização
Tânia Regina Machado tem 59 anos e trabalha com serviços gerais de limpeza. Aluna da EJA (Educação de Jovens e Adultos), ela já aprendeu a escrever, mas ainda enfrenta dificuldades com a leitura.
ATENÇÃO! QUER FICAR POR DENTRO DAS PRINCIPAIS NOTÍCIAS DE CONCÓRDIA E REGIÃO EM TEMPO REAL?O incentivo, no entanto, vem de dentro de casa, das páginas lidas pelo neto Pedro Henrique, de 11 anos, que a acompanha nesse processo de alfabetização.
“Vai fazer dois anos que estou aqui na EJA. É muito bom aprender a ler, a escrever”, conta Tânia. As aulas ocorrem de segunda a quinta-feira, e cada dia é uma nova descoberta. “Aprendo sempre uma coisa nova. E é muito bom também fazer amizade com todo mundo.”
Ao longo da vida, Tânia sentiu muita falta de saber ler. E hoje reconhece o valor desse conhecimento. A presença do neto tornou esse processo mais afetuoso e significativo.
“Quando eu vinha para a aula, eu trazia ele junto. Ainda trago. Aí vamos para a biblioteca, eu pego um livrinho e a gente começa a ler. É muito bom.” Ela mesma escolhe os livros, geralmente pela capa. Pedro lê para ela com paciência e dedicação. “É. Tem que ser, né?”, comenta ela, entre sorrisos.
Durante as férias escolares, o plano é intensificar ainda mais os momentos de leitura em casa. “Quando eu saio do emprego, lá pelas 18h, a gente pega um livro e ele começa a ler. Também estamos escrevendo, né? Ainda estou aprendendo.”
Quando convidado a participar da conversa, Pedro responde com carinho. “É legal, porque antes eu e ela não sabíamos [ler]. Daí eu aprendi. E quando a gente não tem nada pra fazer, ela pega um livro.” Sobre o papel do neto, ela não hesita em dizer: “Ele está sendo também um professor.”
Dia dos Avós fortalece vínculos entre gerações
Celebrado em 26 de julho, o Dia dos Avós é uma data que busca valorizar histórias, memórias e, acima de tudo, os vínculos entre gerações. E em meio a momentos compartilhados entre os avós e netos está a leitura, que, além de proporcionar lazer e conexão familiar, exerce um papel fundamental no processo de envelhecimento saudável.
Especialistas apontam que manter contato regular com textos – seja em livros, jornais, revistas ou até mesmo em formato digital – ajuda a preservar funções cognitivas e favorece o bem-estar emocional.
Na prática, ler pode se tornar um exercício de rotina tão importante quanto caminhar ou manter uma alimentação equilibrada. Para o médico psiquiatra e psicogeriatria João Paulo Branco, o estímulo à leitura deve ser parte das estratégias para um envelhecimento mais saudável.
“Em primeiro lugar, a leitura é uma forma de estímulo cognitivo para todas as pessoas”, destaca o médico. “No envelhecimento, muitas vezes observamos a perda de algumas capacidades, um certo alentecimento das funções cognitivas e também déficits em áreas específicas. A leitura ajuda a preservar essas funções e evita que a perda aconteça de forma rápida ou desastrosa a ponto de prejudicar a autonomia do idoso”, explica.
Segundo ele, ao ser praticada com frequência, a leitura se transforma em uma espécie de exercício mental. “É uma forma de manter as funções cognitivas preservadas. Além disso, ajuda na socialização, pois os assuntos lidos podem ser compartilhados em conversas, despertando trocas e novas experiências”, aponta.
Hábito contribui para aliviar tensões e ansiedades
O médico psiquiatra e psicogeriatra João Paulo Branco observa que, além do aspecto cognitivo, ler também promove equilíbrio emocional. “Ter um hobby como a leitura contribui para aliviar tensões e ansiedades provocadas pelo dia a dia. Isso também fortalece a sensação de autonomia, já que o idoso se sente mais confiante ao perceber melhora em suas capacidades mentais”, afirma.
Branco reforça que o papel da família é essencial para cultivar esse hábito. “Precisamos estimular os idosos a ler. Uma forma simples é presenteá-los com livros, jornais e incentivar a interação com os netos, propondo conversas sobre as leituras feitas por cada um”, sugere.
Para ele, esses momentos vão além de atividades lúdicas. “São formas de trazer o idoso para dentro da rotina da família, o que gera um impacto emocional importante, fortalece vínculos e preserva as funções cognitivas.”
Dessa forma, o médico defende que a leitura deve ser vista como uma prática cotidiana, especialmente na velhice. “De fato, é um ótimo exercício para qualquer pessoa, e na faixa etária idosa não poderia ser diferente. Pelo contrário, deveria ser ainda mais incentivado”, ressalta.
Um presente sobre a mesa
“Quem mal lê, mal ouve, mal fala, mal vê.” Parafraseando Monteiro Lobato, João Aderson Flores, de 82 anos, expressou a importância que a leitura tem em sua vida e na de sua família. Professor e psicólogo, Flores considera a leitura um divisor de águas, um ato que começou ainda na infância com a memória do gesto silencioso do pai.
Quando criança, via o pai, carpinteiro do Clube de Regatas Aldo Luz, chegar do trabalho e, sem dizer uma palavra, deixar sobre a mesa da sala os exemplares retirados como empréstimo da Liga Operária Beneficente de Florianópolis.
“Meu pai era um guerreiro. Um operário. Embora fosse relativamente bem remunerado pelo grau de especialidade que tinha, sustentava uma família com seis filhos. Era uma luta”, lembra. “Ele podia pegar dois ou três livros por semana. Levava os livros, chegava em casa, não dizia nada, só colocava os livros sobre a mesa da sala.”
Janela de oportunidades
Foi assim que João ganhou, ainda menino, o que considera um dos maiores presentes da vida: um exemplar de “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoiévski. “Foi uma das primeiras grandes obras que li, e até hoje é relembrado, uma obra de 1866. Aquilo abriu uma janela de oportunidades. Foi um trampolim”, afirma.
A convivência com os livros seguiu naturalmente. Vieram os clássicos brasileiros – como Machado de Assis e José de Alencar – e depois os gibis, comprados com a pequena mesada que sobrava do pagamento semanal do pai. “O fascínio da imagem, dos quadrinhos, também ajudava, porque a imagem já estava ali”, conta Flores.
A prática da leitura nunca se perdeu e tornou-se ferramenta essencial na sua trajetória pessoal e profissional.
“Eu acredito que a leitura, como eu trabalho como coach, é essencial para todo ser humano. Infelizmente, perdemos leitores. Há uma pesquisa que mostra que o Brasil perdeu milhões de leitores. E por quê? Por causa da internet. Mas eu acho que o grande fator para continuar lendo, na minha experiência pessoal, é a motivação”, avalia.
“Eu preciso estar informado”
Assinante do jornal ND e de revistas de circulação nacional, João Aderson Flores defende que a leitura deve fazer parte do cotidiano, mesmo quando nem tudo o que se lê agrada.
“Eu sou assinante do jornal porque eu preciso estar informado. Não quer dizer que tudo que vem no jornal me agrada, mas eu preciso saber das notícias. Também sou assinante de um jornal de São Paulo e de uma revista de circulação nacional.”
Segundo ele, o motivo é para se manter atualizado e em movimento. “Eu insisto na tese que a leitura transforma. Muda a pessoa. Faz a pessoa ser diferente.”
O exemplo como método
Pai de dois filhos e avô de quatro netos, João não apenas transmite essa paixão pela leitura como também pratica junto. Seja levando os netos à escola ou acompanhando os pequenos até a banca de revistas de supermercados.
“Vai parecer que sou avô babão, mas quando há um sábado, um domingo à tarde, para eu ficar com eles e pergunto: ‘Onde é que vocês querem ir?’, eles dizem: ‘Queremos ir no mercado onde fica a banca de revista’. Eles adoram ir para escolher as revistas deles. Agora que ele está se alfabetizando, já seleciona a revista pelas boas imagens”, conta, referindo-se a um dos netos.
Olívia, hoje com 10 anos, ganhou seu primeiro livro do avô, aos seis meses de idade, e Heitor, 6, recebeu da avó materna o primeiro livrinho de histórias. São recordações até hoje guardadas com carinho.
Na rotina com a família, a leitura aparece como parte da construção de valores. “Não adianta dizer para alguém: ‘seja honesto, seja íntegro’, se você se comporta de forma diferente. Então, o exemplo conta”, afirma. “Boa parte do tempo que dediquei aos meus filhos e netos foi acompanhando eles à escola. Dos cinco dias da semana, pelo menos três eu levo meus netos até o colégio. Todo mundo me conhece lá.”
Para o professor, o incentivo à leitura começa cedo, e não depende de saber juntar letras. Ele cita o psicólogo Jerome Bruner, da Universidade de Harvard, para ilustrar como a leitura pode ser um terreno fértil para o desenvolvimento cognitivo tanto de crianças quanto de idosos.
“Tudo o que você oferece a uma criança nos primeiros anos de vida ajuda ela a evoluir. Quando a criança ainda não sabe ler, precisa de alguém que conte uma história antes de dormir. Mesmo que seja inventada, improvisada, ela vai viajar, vai fantasiar, vai estimular o cérebro.” E ainda reforça: “A pior forma de ensinar é forçar. É coagir. Seja exemplo”.
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